O lado obscuro da universidade

Como era ser bolsista em um curso elitista

Estrelas e Pensamentos
9 min readMay 24, 2020

O sonho de ingressar na faculdade sempre esteve presente na minha vida. Meus pais desistiram de seus planos pessoais para trabalhar por exaustivas horas, tendo como objetivo me proporcionar uma vida diferente daquela que tiveram. Com o apoio deles, fui uma das poucas pessoas da minha turma de ensino médio que não precisou trabalhar para ajudar a família e, assim, pude me dedicar completamente aos estudos.

Entretanto, por ter estudado a vida toda em escola pública a minha desvantagem no vestibular era grande se comparado à alunos da minha idade vindos do sistema particular de educação. Mesmo assim, apoiada em minha ingenuidade adolescente, sempre acreditei que bastava me esforçar para realizar meu sonho universitário. O que eu não esperava era descobrir que passar no vestibular seria a parte mais fácil da minha jornada.

O sonho universitário

Devido as minhas boas notas no ensino médio, ganhei uma bolsa integral em um dos cursinhos mais famosos de minha cidade e no primeiro mês de aula já ficou claro para mim que teria que lutar dez vezes mais para tentar me igualar com os outros alunos. Alguns alunos faziam cursinho desde a oitava série do ensino fundamental, outros tinham acabado de voltar de intercâmbio na Europa e a grande maioria usava o cursinho apenas para rever conceitos que já tinham aprendido na escola.

Naquele momento, o único caminho de acesso à uma universidade para uma pessoa de baixa renda era por meio dos vestibulares das universidades públicas — que de acordo com IBGE apenas 29% dos alunos de escolas públicas conseguiam ingressar — ou por medidas adotadas para expandir o acesso ao ensino superior, como o ProUni.

O Programa Universidade para Todos foi medida implementada em 2005, porém era pouco divulgado nas escolas públicas. Apenas no curso pré vestibular que soube sobre o programa de bolsas e lembro de ficar muito feliz com a oportunidade. Era a chance de realizar meu sonho e permanecer em minha cidade

Consegui vencer a etapa do vestibular e, devido a minha ótima nota do enem, pude me dar ao luxo de realizar matrícula na melhor universidade particular de minha cidade. Fui a primeira pessoa da família a ingressar no ensino superior por vias diretas. Lembro da felicidade dos meus pais. Dos meus familiares. Lembro da minha felicidade. Naquele momento eu já tinha consciência das barreiras sociais que eu havia ultrapassado e da importância para meu futuro.

Eu tive a sorte de ter uma boa adolescência. Sempre tive muitos amigos, era uma das melhores alunas na escola, fui em todos os meus anos como aluna — da 1º série do fundamental ao 3º ano do ensino médio — representante de sala, fui parte do grêmio estudantil, fundei o jornal dos alunos e campeã estadual de handebol. Isso não é um resumo de minhas qualificações para me exaltar, mas eu quero mostrar à você, leitor, o que a universidade arrancou de mim.

Choque de realidade

O ProUni é um ótimo programa implementado pelo governo federal, que modificou as características do ensino superior brasileiro. No gráfico abaixo podemos ver o sucesso das medidas do Programa Universidade para Todos:

Infelizmente a minha felicidade durou pouco, algo que ninguém havia me preparado estava pronto para me derrubar: o preconceito. Ter me esforçado tanto para conseguir aquela bolsa não era motivo de vergonha para mim. Sendo assim, nunca fiz questão de esconder. Um dos assuntos mais falados entres os bixos era sobre como o vestibular tinha sido difícil e em qual colocação cada um teria ficado. Em minha inocência sempre respondi que era prounista. Que erro. Logo, me tornei a imagem que todos tinham desprezo: a negra pobre que tirou a vaga de um branco mais merecedor.

Eu sei o impacto da frase acima, adicione alguns palavrões, e foi exatamente isso que eu ouvi de um aluno do meu grupo depois de cometer um erro no nosso trabalho. Meu erro? Esquecer de citar uma frase conforme as regras da ABNT — eu tinha feito uma citação simples em nota de rodapé. Ele estava certo, eu não sabia editar um trabalho universitário. Ninguém ali sabia. Mas para mim, era negado até a chance de aprender.

Na minha sala de aula éramos oito alunos prounistas, mas eu era a única que foi sincera sobre isto desde o inicio. Três alunos mentiram durante a graduação toda, uma aluna inclusive me proibiu de falar com qualquer pessoa sobre isso. Eu levei um tempo para entender que eu não era aceita ali. Os dias eram pesados e acordar para ir à faculdade se tornava, cada dia mais, uma tarefa quase que impossível.

Na primeira semana de aula, um professor entregou uma ficha à todos os alunos onde tínhamos que preencher: a escola que fizemos o ensino médio, o nome dos nossos pais, a profissão dos nossos pais, a universidade que nossos pais estudaram e como eu tinha escolhido aquela profissão. Ainda no alto de minha pureza, preenchi a ficha com sinceridade. Como não caberia neste texto seis meses de humilhação, falarei apenas que aquele professor nunca respondeu uma pergunta minha e ainda ficou surpreso com minha nota azul em sua prova.

Um outro professor, também em sua primeira aula, perguntou de que escola nós vínhamos. Ele ficou visivelmente chocado com a minha resposta sincera, ainda mais na frente de toda a sala. A partir daquele dia sempre tivemos uma relação ruim, a ponto de eu ter que assistir essa matéria em outro período, apenas para não chegar perto dele.

Um dia fui para a aula de vestido e salto alto. Uma colega de classe venho me perguntar como eu conseguia andar de salto. Eu não entendi a pergunta e questionei se era por causa da minha altura — sou muito alta — e ela questionou como eu conseguia andar de salto no barro, já que não tinha asfalto na favela. Fiquei alguns segundos olhando para ela e quando eu percebi que a pergunta era genuína, apenas respondi que não morava na favela. Não sei qual das duas ficou mais perplexa, eu com a pergunta ou ela com a minha resposta.

Veja quantas questões podemos levantar apenas com a frase acima. Eu era a personificação do estereótipo criado na cabeça da classe média alta onde o pobre sempre esteve marginalizado. No alto de seus privilégios, aqueles alunos e professores não podiam nem enxergar o quanto eu era privilegiada e quantas pessoas, tão merecedores quanto eu, não tiveram a chance de estar naquele lugar.

Invisibilidade

“Pela primeira vez há um controle social da filantropia. Com o ProUni, as universidades são obrigadas a oferecer, em contrapartida à isenção tributária, bolsas de estudos para alunos de baixa renda”

Antônio Leonel Cunha

O ProUni é um programa de win-win situation, onde o governo federal reverte os impostos que seriam pagos pela universidade em uma bolsa de estudo de 50% ou 100% para um aluno de baixa renda vindo da escola pública, na proporção de uma bolsa a cada onze alunos pagantes. Além disso, o critério de entrada desses alunos é o ENEM que se destaca como vestibular de entrada para as melhores universidades do país. Sendo assim, a universidade ganha isenção de impostos e o governo implementa ações afirmativas para melhoria da sociedade.

Contudo, quando ingressei na universidade minha única sensação era de que não queriam a minha presença. Eu era como um fantasma que eles não sabiam lidar. Os professores não sabiam como falar comigo e os alunos me viam como atração de circo.

A universidade não tentou me acolher de nenhuma forma, não havia qualquer grupo de suporte aos alunos bolsistas. No primeiro ataque que sofri eu não tinha a quem recorrer ou a quem denunciar. Minha única reação foi me prender por uma hora no banheiro, chorando, querendo apenas nunca mais voltar.

Bell Hooks

Bell Hooks em seu livro Ensinando a transgredir diz:

Os educadores estão mal preparados quando comfrontam concretamente a diversidade

No ano do meu ingresso, a única forma de boas vindas era uma palestra de trinta minutos com o diretor, expondo as normas da faculdade e uma apresentação das entidades estudantis por cinco minutos. O trote ainda era visto como integração social, então eu não tinha a menor chance de interagir com outros alunos.

Caberia à universidade preparar ações e grupos de apoio para amparar os novos alunos. Bem como preparar os professores para lidar com as diferenças. Meu curso era extremamente elitista e majoritariamente branco, a função da universidade como instituição era promover debates e integração entre alunos. Contudo, o que eu via era uma negligência e atitude de afastar a instituição dos alunos. Promoviam uma doutrina de que éramos adultos e, como adultos, que cada aluno lidasse com suas próprias frustrações.

“O jovem que alimenta o projeto de entrar na universidade, e o consegue, quase sempre após grandes e sofridas batalhas para atingir esse lugar, o que acontece, quando atinge o seu objetivo?” Elza Dutra

O que ficou em mim

O menino defensor da ABNT foi meu primeiro caso de afronta direta — e o que mais me marcou — mas infelizmente ele só foi o primeiro de inúmeros casos de discriminação que sofri durante minha jornada de cinco anos. Segue abaixo frases que ouvi apenas no meu primeiro ano de faculdade:

“ O ProUni venho para diminuir o nível da universidade”

“Não importa o que você pensa, eu sou o professor, e na minha aula você não tira dez.”

“ Volta para seu buraco”

“ Como você acha que vai se formar, se não sabe nem escrever?”

“ É uma vergonha para mim dividir uma sala de aula com você”

“Agora entra qualquer um na faculdade”

“Como você vai conseguir um emprego com esse cabelo”

“Pelo menos você vai saber lidar com os clientes pobres”

Eu, no alto de meus privilégios, nunca tinha me deparado com uma situação em que não me queriam. Hoje tenho a plena certeza que para muitos daqueles alunos fui a primeira pessoa que os fez confrontar com seus próprios privilégios e como eles poderiam ser melhores (ou piores). No começo, eu nunca era tida como ameaça, e sim como ato permissivo. Eu era a boa ação de seus pais que pagavam minha bolsa com seus impostos — sim, também ouvi essa frase de um “amigo” — com o tempo perceberam que eu iria ficar e como eles, ocupar os espaços que também eram meus por direito.

Como você pode imaginar, não foi fácil lidar com isso. Como citei no começo do texto, sempre fui muito ativa nos projetos escolares e com a vida estudantil e eu imagino todos os dias: quem eu poderia ter sido se a universidade tivesse sido um lugar saudável? Ninguém pode responder essa pergunta. Mas eu sei quem eu me tornei após passar por tudo isso e como até hoje essas frases ecoam na minha cabeça.

Fui por muito tempo o que eles queriam: calada, inativa e cautelosa. Era uma aluna mediana, pois não tinha forças para aprender. Demorei anos para conseguir estágio na área, tinha medo de passar por tudo aquilo de novo. Os três primeiros anos da faculdade são como um espaço em branco da minha memória e ainda choro quando lembro quão indefesa me senti.

Com os anos fiz poucos, mas bons amigos na faculdade e a jornada se tornou um pouco mais fácil. Gostaria de agradecer a Jana, minha monitora, que foi a única a escutar minha história e tentar aliviar um pouco meu sofrimento. Hoje ela é professora e pessoas como ela me fazem acreditar que eu passei por isso, para que um dia ninguém mais passe.

Fontes:

Dutra, Elza Suicídio de universitários: o vazio existencial de jovens na contemporaneidade Estudos e Pesquisas em Psicologia, vol. 12, núm. 3, septiembre-diciembre, 2012, pp. 924 -937 Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, Brasil

HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

Santos HGB, Marcon SR, Espinosa MM, Baptista MN, Paulo PMC. Factors associated with suicidal ideationamong university students. Rev. Latino-Am. Enfermagem. Available in: http://www.periodicos.usp.br/rlae/article/view/134940/130724

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Estrelas e Pensamentos

Uma mistura de poesia, ciência, política aplicada, conversas banais, uma letra do Caetano com flow do Racionais por Karine de Paula